XLIX



Começou a chover. Prisquit já estava habituado a este clima. Não o incomodava. Não desde que quase se tinha afogado numa poça gigante nos primeiros dias de vivência em pleno neste metrópole. Passado o período de maior fascínio, os aspectos mais terrenos começaram a ganhar mais importância. Ou apenas importância. No início, quando decidiu abandonar tudo e reiniciar-se no espaço e no tempo, houve disponibilidade para redescobrir aquilo que apenas tinha lido em livros e visto nas fotografias nas fotografias que o seu tio lhe mostrava com entusiasmo. Desde pequeno que a cidade o atraía, mas só há uns anos germinou o desejo de a visitar e, quiçá, adoptá-la. Com o dinheiro que havia amealhado, passeou-se como turista, saturando-se dos aromas e cores, fechando por vezes os olhos para ouvir a música dos carros, bicicletas e comboios. Cruzava olhares com todos os que passavam e imaginava-se a habitar os edifícios invulgares e bem cuidados, onde História e reflexos respiravam alternadamente. Conhecer pessoas de várias proveniências, exercitar dialectos enferrujados, partilhar episódios, bebidas e beijos. Quando se sentiu preparado, procurou trabalho e facilmente encontrou um que lhe permitia articular com os passeios matinais e as corridas de fim de tarde, banhando-se no canal ou deitando-se na relva, que aqui lhe parecia bem mais verde. Os jantares frequentes com amigos e conhecidos, a intensa vida social e cultural, preenchiam-no plenamente. Quando se sentia inspirado, retomou a sua paixão como escritor de pequenas histórias e ilustrador das mesmas. Encontrou e desencontrou amores rápidos, jogos de prazer e dor, enfim, o normal na celeridade impressa no regime cosmopolita. A chama que agora caía era um pequeno preço a pagar por estas oferendas. Contudo, a chuva de hoje tinha algo de diferente, que se revelou num pequeno pormenor que se foi ampliando até dominar a sua atenção. Uma tonalidade rubra intensificou-se no líquido frio que invadia a sua mão. Da mesa do café não imaginava o que estava prestes a acontecer. Quando, depois de uma rabanada de vento, um bilhete lhe caiu aos pés, uma sombra aumentou discreta e rapidamente de tamanho. Antes mesmo que tivesse lido a nota de suicídio que aterrou, foi esmagado pelo corpo de Kamaza, uma sua conterrânea, que o antecipou por uns dias na migração para a cidade. Pelo menos, era o que se dizia na aldeia. Nunca mais se tinha ouvido falar nela, a não ser pelas escassas porém longas cartas que dirigia à sua avó acamada, que não conseguia lê-las e pedia à sua enfermeira para recriar com entoação (ao que esta o fazia de bom grado, pois tinha uma paixão por literatura) os contos de sua neta. Encantava-se nas descrições arrebatadoras, pela suposta felicidade crivada naquelas linhas, o que a fazia crer que se encontrava realizada e feliz. Pareciam episódios dum romance, e a enfermeira reconhecia nos textos um grande valor artístico e emocional, não desconfiando que aqueles manuscritos iriam financiar os cuidados paliativos que crescentemente a sua avó carecia. Hoje em dia, o nome de Kazama e sua obra é sobejamente conhecido, bem como o de Prisquit, o homem que lhe amparou a queda.

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