L



Kerruy saía todas as manhãs para um passeio antes de começar a trabalhar. Os aromas do orvalho, a textura fresca do ar e as cores que acordam do seu sono eram algo imperdível para ele. Não havia dia em que não descobrisse algo novo, um pormenor, um conjunto, uma parede iluminada de forma diferente, um animal que se lhe atravessava o caminho. Os seus sentidos fervilhavam por vezes com tal sobrecarga de novidades. Noutras alturas jogava com o que lhe era familiar, antecedendo o que os olhos percorriam ou adivinhando o som umas fracções de segundo antes de as formas penetrarem na retina. Cruzava-se com conhecidos, que cumprimentava serenamente, minimizando a desconcentração. Via crianças que pouco conhecem as rotinas, turistas que se deslumbravam, situações inusitadas que lhe desviavam o olhar e uma beleza ubíqua que não o cansava. Uma paixão constantemente alimentada por aqueles momentos, cenários que poderiam facilmente saturar o comum mortal, mas não a Kerruy. Depois de cada passeio, dirigia-se ao local de trabalho com um sorriso esboçado e duradouro. Alguns colegas tomavam-no por um parvo alegre, pois não vislumbravam razão óbvia para tal face prazenteira. De vez em quando, principalmente os estagiários, lá o auscultavam para encontrar a origem de tais luzes, mas revelava-se inútil. Kerruy tinha o semáforo da sua intimidade quase sempre no vermelho. Mas isso mudou quando conheceu dois novos estagiários. Putz e Raquina eram um casal alegre, acabados de se formar, cúmplices em muitas situações. Certo dia apanhou-os a comentar a luz que banhava a cidade ao entardecer. Cada um apontava um aspecto que lhe tinha captado a atenção e o outro complementava com um aceno ou outra observação ao mesmo local ou tempo. Todos os dias falavam dum assunto com pormenores e conjuntos relacionados. A curiosidade de Kerruy aguçava-se em relação àquele casal, e ainda se elevou quando trouxeram uma máquina fotográfica. Aí, para além das observações sensoriais, comentavam pormenores técnicos das máquinas. Kerruy nunca se interessou por fotografia, mas as conversas estimulavam-no. Tomou coragem e abordou-os: – Desculpem, mas não consigo evitar ouvir-vos falar das vossas fotografias. – Ora essa! É um prazer falar e ouvir falar sobre essa arte, considerada menor por tantos – respondeu Putz. – Junte-se a nós. De certeza terá algo para partilhar connosco – sugeriu Raquina. A partir daí, a conversa fluiu como nunca. Kerruy, de início, apenas fazia perguntas, típico num espírito de iniciado. O casal ressalvava o valor da fotografia e as suas virtudes na captação do momento, único, inexorável e pessoal. Apesar de pressentir que todas as qualidades do registo eram exacerbadas por aquele par de apaixonados, deixou-se embriagar pelas emoções despertadas pelas descrições e imagens poéticas. De certa forma, equivaliam-se àquelas que o faziam despertar mais cedo todas as manhãs. Pouco a pouco, ia partilhando as suas impressões das caminhadas matutinas. A enxurrada de termos e expressões entrelaçava-se com os olhares, transmitido num empenho extraordinário que não deixava escapar nada. Beirais que contam histórias, árvores que mudam de tonalidade e forma, pássaros que vigiam e entretêm o seu perímetro, pedras da calçada que parecem desenhar algo diferente todos os dias, estudantes que brincam enquanto comentam os seus exames e professores, sorrisos familiares que alternam com relances melancólicos nas mesmas faces, livros que mudam de mão, cabelos que ondulam ao vento e se cruzam com dedos, encontros que se marcam com entusiasmo, conversas que se interrompem, telemóveis que se acusam com toques surpreendentes, automóveis com ritmos distintos, sóis que se reflectem, flores que desprendem o seu perfume dos vasos dos parapeitos, cabeças que espreitam por entre as cortinas, jogos que se partilham a caminho da escola, mãos que se unem, braços que se chocam, dezenas de melodias que escapam dos auscultadores e dos assobios, peles de várias cores e brilhos, o cheiro de café, o esvoaçar dos guarda-sóis nas esplanadas, momentos intercalados, que se iniciam ou têm um desfecho, por vezes definitivo. As horas passam e a conversa jorra como uma nascente termal, quente e abundante. Dias e dias se passaram até que Kerruy é desafiado. Putz e Raquina propuseram-se fotografar uma das manhãs de Kerruy. O objectivo seria comparar as imagens directas com as induzidas. Kerruy ainda hesitou, mas reflectiu e concluiu que seria um passo natural. Combinaram logo ali que seria no dia seguinte. Apareceram munidos de máquinas e outras parafernálias. Apesar de ser um passatempo, era levado a sério pelo casal, pelo menos no que à técnica diz respeito. Depois de cumprimentar o guia, partiram então para o safari, tentando caçar os instantes de deslumbramento que Kerruy narrava. A tarefa pareceu bastante simples e os três operavam como se de uma equipa bem treinada se tratasse. Kerruy apontava o olhar, por vezes o dedo, Putz adiantava-se enquadrando a expressão, e Raquina cobria a rectaguarda, privilegiando os melhores ângulos e os planos mais próximos da perspectiva do dono do passeio. Demoravam mais tempo que a normal caminhada, isto porque a falta de contenção na captura equivalia a um ganancioso sob uma chuva de dinheiro ou a um petiz em frente a uma banca de guloseimas. Após o frutífero trajecto, dirigiram-se ao local de trabalho, chegando entusiasmados e ansiando pelo resultado da sessão. No dia seguinte apresentar-lhe-iam uma selecção de fotografias. Convidaram-no para ir ao apartamento que tinham alugado. – Desculpe a desarrumação. Mudámo-nos há pouco tempo. – Deviam ver a minha casa de solteiro! Prefiro as ideias arrumadas que os móveis da sala ou a roupa de cama. Riam descontraidamente, enquanto Putz preparava umas bebidas. Após estes momentos soltos, Raquina coloca um envelope na mesa da sala. Saca dum molho de rectângulos de papel e entrega-os ao visitante, aguardando as primeiras reacções. O semblante de Kerruy foi-se modificando enquanto desfolhava o conjunto. O horror foi-se apoderando da sua face, até que pousa secamente as fotografias na mesa. Pede licença em voz baixa e sai porta fora. – Que terá acontecido? – Seremos assim tão maus fotógrafos? No dia seguinte encontraram um Kerruy apagado, de muito poucas palavras e sem brilho nos olhos. Nunca viriam a saber que aquelas fotografias, tentativa de espelho da alma, a haviam roubado, como na história da Alice.

XLIX



Começou a chover. Prisquit já estava habituado a este clima. Não o incomodava. Não desde que quase se tinha afogado numa poça gigante nos primeiros dias de vivência em pleno neste metrópole. Passado o período de maior fascínio, os aspectos mais terrenos começaram a ganhar mais importância. Ou apenas importância. No início, quando decidiu abandonar tudo e reiniciar-se no espaço e no tempo, houve disponibilidade para redescobrir aquilo que apenas tinha lido em livros e visto nas fotografias nas fotografias que o seu tio lhe mostrava com entusiasmo. Desde pequeno que a cidade o atraía, mas só há uns anos germinou o desejo de a visitar e, quiçá, adoptá-la. Com o dinheiro que havia amealhado, passeou-se como turista, saturando-se dos aromas e cores, fechando por vezes os olhos para ouvir a música dos carros, bicicletas e comboios. Cruzava olhares com todos os que passavam e imaginava-se a habitar os edifícios invulgares e bem cuidados, onde História e reflexos respiravam alternadamente. Conhecer pessoas de várias proveniências, exercitar dialectos enferrujados, partilhar episódios, bebidas e beijos. Quando se sentiu preparado, procurou trabalho e facilmente encontrou um que lhe permitia articular com os passeios matinais e as corridas de fim de tarde, banhando-se no canal ou deitando-se na relva, que aqui lhe parecia bem mais verde. Os jantares frequentes com amigos e conhecidos, a intensa vida social e cultural, preenchiam-no plenamente. Quando se sentia inspirado, retomou a sua paixão como escritor de pequenas histórias e ilustrador das mesmas. Encontrou e desencontrou amores rápidos, jogos de prazer e dor, enfim, o normal na celeridade impressa no regime cosmopolita. A chama que agora caía era um pequeno preço a pagar por estas oferendas. Contudo, a chuva de hoje tinha algo de diferente, que se revelou num pequeno pormenor que se foi ampliando até dominar a sua atenção. Uma tonalidade rubra intensificou-se no líquido frio que invadia a sua mão. Da mesa do café não imaginava o que estava prestes a acontecer. Quando, depois de uma rabanada de vento, um bilhete lhe caiu aos pés, uma sombra aumentou discreta e rapidamente de tamanho. Antes mesmo que tivesse lido a nota de suicídio que aterrou, foi esmagado pelo corpo de Kamaza, uma sua conterrânea, que o antecipou por uns dias na migração para a cidade. Pelo menos, era o que se dizia na aldeia. Nunca mais se tinha ouvido falar nela, a não ser pelas escassas porém longas cartas que dirigia à sua avó acamada, que não conseguia lê-las e pedia à sua enfermeira para recriar com entoação (ao que esta o fazia de bom grado, pois tinha uma paixão por literatura) os contos de sua neta. Encantava-se nas descrições arrebatadoras, pela suposta felicidade crivada naquelas linhas, o que a fazia crer que se encontrava realizada e feliz. Pareciam episódios dum romance, e a enfermeira reconhecia nos textos um grande valor artístico e emocional, não desconfiando que aqueles manuscritos iriam financiar os cuidados paliativos que crescentemente a sua avó carecia. Hoje em dia, o nome de Kazama e sua obra é sobejamente conhecido, bem como o de Prisquit, o homem que lhe amparou a queda.

XLVIII

Quando nos perguntam que livro, disco ou filme levaríamos para uma ilha deserta, esquecem-se que é necessário equipamento e electricidade para os dois últimos. Além disso, não iriam ser esses objectos a impedir o suicídio. Apenas o adiariam.

XLVII



Quando ouvimos dizer que alguém adoeceu, a maleita muito raramente ataca uma só pessoa. A prazo, várias pessoas contraem doenças por consequência, seja por forma directa (os contagiados) ou indirecta (os entes queridos). Os primeiros padecerão fisicamente, os segundos física, mental e emocionalmente. Por tal motivo, a contagem de vítimas é sempre arredondada por defeito e está longe de ser precisa.

XLVI



Em relação à música, descobri que tenho, essencialmente, duas posições: a música que me apaixona e impele, e a outra, que apenas me dou por contente por ter conhecido. Da primeira, tenho esperança que me passe toda pela cabeça naquele instante antes da escuridão total, a qual todos experimentaremos, e que me deixe entorpecido para toda a eternidade.

XLV



Pelomenoi, uma ilha situada no maior dos oceanos, foi atacada por um flagelo. Uma doença, semelhante à praga que o deus cruel de Moisés fez descer sobre os primogénitos do Egipto, atacou os infantes deste povo pacífico. Alastrando como tinta sobre papel absorvente, foi privando famílias das suas fontes de alegria. Os rostos sem expressão e os olhos consumidos pelo negrume afiguravam-se nos pais, como se as almas tivessem sido sugadas. Muitos sucumbiam à dor insuportável de um pedaço arrancado à sua carne. Outros procuravam superá-la pela solidariedade. A impotência da Medicina ampliava o desespero e ondas de histeria e revolta iam irrompendo um pouco por todo o lado. Poucos dias depois do infanticídio ter começado, a peste já tinha ceifado mais de metade das curtas vidas. Os recreios estavam vazios, nas ruas reinavam o silêncio ou o pranto, os sorrisos eram obliterados, a alegria foi engolida pela terra, o futuro ficou congelado. A própria Natureza fez-se acompanhar de sintomas de declínio, com um Inverno antecipado, ocupando o lugar legítimo do Outono. A tristeza evoluiu para um estado de depressão colectiva, apagando dos corações toda a réstia de esperança que poderia aí residir. Então, tão depressa como começara, o extermínio sem justiça cessou, deixando para trás uma população desolada, marcada perpetuamente pelo passado condensado num breve período, mais negro que a própria morte.

Naxiver era uma criança comum, igual a tantas outras que viviam no lado sul de Pelomenoi. Dividia o seu tempo entre os livros, o ensino formal, ministrado pelos seus pais, a brincadeira, partilhada com os outros petizes da aldeia próxima, e ainda as aventuras imaginadas no imenso terreno contíguo ao mar que a família possuía. Organizava vigílias para evitar ataques de piratas, convocando a ajuda dos seus cães. Liderava expedições à pequena floresta cerrada, onde imensos perigos espreitavam, à espera de desafio, colocando em risco a sua vida e a segurança dos seus mais próximos. Certo dia, apercebeu-se de algo que não soube identificar nem associar. Era uma manifestação misteriosa, um alerta invisível que o avisava que algo estava errado. Muito errado mesmo. Essa sensação de desordem ia aumentando e sendo partilhada pelos seus amigos mais próximos. Num gesto altruísta, Naxiver reuniu todas as crianças da aldeia e incentivou-os a irem para as dunas, onde sempre se sentiu seguro. Sob o pretexto de um acampamento, convenceram os pais a deixarem-nos passar uns dias junto ao mar, com mantimentos e agasalhos. Cada vez mais as crianças sentiam que esse ímpeto era mais que uma simples vontade indomável. Era o mais básico instinto de sobrevivência que disparou no âmago dos pequenos seres. Chegados à praia, montaram as tendas e aí ficaram durante algum tempo. O suficiente para que aquilo, mais forte ainda que as suas biologias, desaparecesse e não os desgastasse com esse espírito permanente de alerta. Distraíam-se com algumas brincadeiras, claro, mas o fantasma do desconhecido assombrava-os. Um enorme desconforto era a menor das sensações. Uma manhã, acordaram com o raiar do sol, e o sentimento colectivo transformou-se. Uma tranquilidade, um alívio inexplicável abraçou todos os campistas, seguido por um deslumbre de quem vê o sol pela primeira vez. Quando regressaram a casa dos seus progenitores, renderam-se a todos os rituais de alívio. Deixaram-se abraçar e enxugaram as lágrimas de quem lhes deu vida. A razão para tal comoção comunitária viria a seguir, mas nenhum deles estranhou as notícias nem possíveis justificações. Aceitaram e um pacto colectivo e silencioso foi implicitamente assinado, como se de uma colonização se tratasse. Daí a uns anos isso faria todo o sentido.

XLIV



Equir Maquiats era um típico homem de negócios. Activo, muito ocupado, impaciente, decidido, diplomático, sociável, astuto, atento, enfim, reunia uma série de características determinantes para o seu sucesso. Para se deslocar em trabalho, o comboio era a sua predilecção. Defendia que é confortável, seguro e fiável a nível de horários. Permitia o tratamento e resolução de diversos assuntos sem ter que se preocupar com o consumo pessoal da condução de um automóvel, algo que não apreciava. “O avião também permite isso”, argumentavam, “Mas priva-me do exercício mais pormenorizado da observação da natureza e das gentes”, respondia. Considerava-se um homem preocupado com o ambiente, o que seria verdade caso não gerisse empresas no ramo dos combustíveis e dos transportes. Contudo, era sincero no que diz respeito ao que apreciava da janela. Pouco a pouco, nos diversos trajectos que habitualmente percorria, foi integrando os fragmentos visuais dos locais por onde passava, pintando elaborados quadros na sua mente. Os vários tons de verde das imensas matas, florestas e campos, os cinzentos das rochas longíquas, os laranjas das terras argilosas e do sol, os movimentos graciosos dos cavalos de raça e o passo atrapalhado dos rebanhos, as casas caiadas que albergam vidas amarguradas, os postes de electricidade que desaparecem no horizonte, as viaturas que se multiplicam em rumos. No intervalo de uma análise de dados ou de um telefonema urgente, perdia-se a imaginar o que cada pessoa na estação desejava ou receava naquele momento, apenas baseado na forma e direcção do seu olhar. Arriscava adivinhar o aroma das flores que inundavam a beira da estrada, o riso maroto e histérico das crianças que regressavam da escola, a pele macia das turistas de vestidos coloridos, o aroma do solo e da palha logo após as primeiras gotas de chuva num dia quente. Aquele vidro duplo isolava-o dos valores reais que os sentidos lhe retornariam. Constituía, contudo, um estímulo às possibilidades, tal como nos sonhos em technicolor.
Numa certa viagem, alguém sentado uns lugares à sua frente, fixou o seu olhar em Equir. Não desviava a atenção, como se quisesse perscrutar-lhe a alma. Quanto mais evitava, mais vontade sentia de corresponder a essa estranha e intimidante contemplação. Acabou por ceder, e não tardou em sentir-se entorpecido, perdendo a consciência pouco depois. Quando a recobrou, não encontrou viv’alma na composição. Olhou para fora, mas o cenário não lhe era familiar. Logo se apercebeu que não ia chegar ao destino inicialmente previsto. A mulher e os filhos não iriam sentir a sua falta. A sua figura ausente foi a imagem que se foi instalando no ambiente lá de casa. Fechou a tampa do portátil, recostou-se na cadeira, virou a cabeça para admirar o novo percurso. Restava-lhe apenas esperar o fim daquela viagem num comboio fantasma.

XLIII



Todos os dias caminhava ao longo do rio, reconhecendo tudo pelo seu reflexo nas límpidas águas. Árvores acenantes, pedras deslizantes, pássaros cantantes, céus nublados ou azuis, tudo visionava nesse espelho sereno mas corrente. Naquele dia, algo cortou essas imagens. Uma figura singular, quase imersa, desviava-me a atenção. Jurei a mim mesmo nunca me atrasar aos meus deveres, mas o magnetismo daquele corpo nu atrasava-me o cumprimento. Aquela beleza sobejava na paisagem, afogava os outros sentidos e, de forma inevitável, fazia crescer um desejo. Tocar-lhe era imperativo, não apenas pela ânsia da concretização mas também pela confirmação de que era real. Com receio de acordar a sedutora passiva, aproximei-me lentamente, com os passos sorrateiros a que habituei aquele lugar. Estava prestes a tocar na sensualidade ali repousada, a pousar minhas mãos nas curvas de uma volúpia incerta, a sentir a pele fresca da juventude e os seios firmes da inocência. O ímpeto sobrepunha-se à moral e a corrupção à consciência. Já quase com o sentimento de posse a dominar-me, a mulher agarra-me com firmeza e mergulha-me nas águas que se vão turvando. "Seria castigo? Sou punido por sucumbir à harmonia e à natureza?". Foi a dúvida que se formou antes da sua mão de sereia me privar do meu derradeiro fôlego.

XLII



A perspicácia é algo que me fascina. Aspiro algum dia atingir essa qualidade, se bem que penso que as probabilidades de isso acontecer são baixas. Sou uma pessoa normalmente distraída, ao ponto de, ao ver dois 2 juntos, pensar mais depressa num 22 que num 4. No entanto, com o passar dos anos, investi um pouco mais na observação e passei a praticar algo que se pode chamar de falsa perspicácia, ou seja, identifico algumas situações e modelos baseados em percepções ou acepções passadas. Acho que vou morrer sem saber o que é ser sagaz, mas felizmente tenho pessoas que me rodeiam que possuem essa virtude. Conformo-me, mas suspeito que até um espantado tem o seu charme.

XLI



No quotidiano, existem pequenos hábitos que só são compreendidos e/ou plenamente aceites por quem os pratica. Todos os dias de trabalho, por duas a três vezes, subo as escadas dos oito andares que separam o rés-do-chão e o piso onde está o gabinete. Os colegas atiram com motivos que, para eles, parecem ter alguma lógica - a saúde, receio dos elevadores, claustrofobia, uma promessa -, mas não aponto nenhum como possível causa consciente. Nem eu próprio me dou a esse exercício, pois estou convencido que não encontraria razão plausível. Sendo assim, atira-se isto para o plano das obsessões.

XL



1. Como se chama um ser com duas valências?
- Ambiente.
2. Como se chama o fenómeno em que se vê um alce duas vezes?
- Realce.
3. E nivelar três vezes?
- Tricotar.
4. Como se chama algo relativo a uma das vistas, mas em consonância com o novo acordo ortográfico?
- Semiótica.
5. Porque é que subir não é ir para baixo?
(...)

XXXIX



Dei por mim a pensar num cenário em que morresse, ficasse mentalmente incapacitado ou fosse atacado por uma amnésia. Como nunca partilhei a password deste blog, como concluiriam os (poucos) leitores que este anfitreão não mais voltaria a escrever?

XXXVIII



Evero era um rapaz completamente obcecado com o peso. Tudo isto partiu de uma resolução em perder o excesso de peso e estabilizá-lo na marca dos 65 quilogramas. O que no início se aparentava com uma simples dieta culminou num regime extremamente regrado e controlado. Assim que atingiu o peso pretendido, permitia-se uma tolerância máxima de 200 gramas. Isto tinha como consequência comportamentos bizarros, como seja comer ou beber enquanto satisfazia as suas necessidades fisiológicas de forma a compensar a perda de massa e assim não ultrapassar os limites auto-impostos. Com o passar do tempo, reduziu a tolerância e estendeu as regras a todas as suas acções. Contabilizava calorias queimadas, suores excretados, pêlos e peles perdidas no ciclo natural, lágrimas vertidas, unhas cortadas, saliva adicionada ou subtraída em momentos de luxúria, esperma desperdiçado, sangue derramado e demais mucos segregados. Começou a trabalhar a partir de casa, pois fora desta espreitava o descontrolo. Esta conduta intrigava cada vez mais Verwa, a única amiga que o visitava com alguma regularidade. Avisava-o que estava a perder a sanidade mental e que isso conduziria a uma vida solitária, sem sentido, mergulhada neste remoinho obsessivo-compulsivo. O amor não declarado que ambos sentiam levou a uma tomada de consciência por parte de Evero e a uma necessidade de expressão por parte de Verwa. Uma flecha atravessou o cérebro dele, apercebendo-se do mal infligido a si próprio e ao objecto da sua profunda afeição. A um pedido sincero seguiram-se um pranto convulsivo, um abraço, um olhar, um beijo, uma carícia, um desejo. Fizeram amor, renasceram, reforçaram-se. Ali na cama, no conforto dos corpos, onde o descanso sucede ao amor, tomaram decisões, apontaram resoluções e planearam o futuro radioso. Evero levanta-se num ápice, possuído pela alegria e consumido pela fome. "Vou buscar algo para comermos. Volto já.", disse, com um sorriso espelhado. Desce as escadas, escorrega, cai, parte o pescoço no lancil e fica imobilizado. Verwa desce alarmada e segura-o, enquanto os sopros se esgotam. "Não pode ser! Quão injusta pode ser esta vida?", lamentava a rapariga. "Pelo menos acabámos com a opacidade. Quando for apropriado, transfere os nossos planos para outra pessoa. Faz isso por mim.", consolou Evero, antes da derradeira contracção do diafragma. Com o seu amado inerte nos braços, Verwa chorou 21 gramas.

XXXVII



Um homem caminha pela rua fora quando embate numa mulher cega que estava a pedir esmola. “Desculpe, não a vi”, justificou o homem. “Não há problema. Eu também não.”, respondeu a senhora.

Diz-se que os homens preferem as loiras mas casam com as morenas. Muitas destas, passados uns tempos, também ficam loiras. Será por vaidade, por receio ou por algum tipo de complexo?

Quando alguém está atrasado para um compromisso, há sempre algo que atrasa ainda mais. Até aqui nada de novo, pois pode muito bem ser uma aplicação das Leis de Murphy. Quando acontece a situação inversa, ou seja, alguém está adiantado, já constatei que frequentemente algo facilita a antecipação, aumentando o tempo de espera e, como consequência, o desespero e a magnitude das desculpas. Se, nos primeiros, há uma tentativa de compensação do atraso, os segundos também poderiam esforçar-se por contrabalançar.

XXXVI



Abdil vivia no deserto, onde tinha tido uma infância feliz. Rebelde por natureza, aceitou com indignação ser oferecida para casamento a Mirafah, filho de família abastada, a troco de uma cáfila bem numerosa. Aos 10 anos foi desposada e três anos depois deflorada. Ao longo dos anos, Abdil revelou-se a esposa favorita. Das cinco que Mirafah possuía, era a única que resistia às suas investidas. Apenas cedia com alguma sedução ou contrapartida. Curiosamente também constituia excepção no que diz respeito à descendência. O facto de ainda não ter tido filhos favorecia-lhe a figura, tornado-se alvo de inveja por parte das restantes mulheres. Certo dia, estando Mirafah junto do estábulo dos cavalos, acariciando e conversando com Jub, a sua montada habitual, foi surpreendida pelo marido. Ele imobilizou-a e proferia cruelmente “Vou-te possuir em frente ao teu cavalo preferido. Há-de espumar de ciúmes.”. “Larga-me!”, gritou Abdil. “Agora iremos ver quem manda”, afirmava maliciosamente o patrão. Enquanto a atmosfera se preenchia com os gritos de Adbil, deitou-a de costas, subiu-lhe a túnica e preparava-se para a penetrar friamente. Desesperada, chegou com a mão ao ferrolho que continha o seu cavalo, este soltou-se e, alarmado pela aflição, cravou os cascos na cabeça de Mirafah, causando-lhe morte imediata. Depois disso, Abdil herdou toda a fortuna do defunto, ordenou que as suas esposas fossem largadas ao vento do deserto e jurou a si mesma que nunca nenhum homem entraria em seu ventre.

(Esta história foi origonalmente publicada no blog Let It Be

XXXV



Criba era cega de nascença. Tal como acontece com grande parte daqueles que se vêem privados de um ou mais sentidos, houve um apuramento dos restantes. Não via a intensidade cromática de uma flor a desabrochar, mas o primor do seu perfume preenchia esse vazio nunca sentido. Não via o mar, mas o som das suas ondas a espancar a areia para depois a acariciar com o bálsamo da sua espuma era algo que os seus ouvidos não conseguiam descrever. Não via a chuva, mas a sua língua testemunhava o paladar do ciclo da água. Não via o seu gato, mas o simples roçar do seu pêlo fazia-a adivinhar as suas intenções, emoções e acções.
Criba sabia que era portadora de formas e feições perfeitas, exibindo uma beleza, no mínimo, consensual. Ela própria se achava formosa e muita gente lhe confirmava isso. Por isso era tão cobiçada pelos homens e pelas mulheres. Por vezes deixava-se seduzir, se bem que o papel de sedutor e seduzido se confundem a partir da primeira cedência. Quando se entregava fisicamente a alguém, gozava de sensações que a outra parte nem imaginava. A sua percepção era tão intensa que a excitação resultava amplificada. O sabor de um beijo era mil vezes mais prazenteiro que o mais suculento dos doces. Na ofegância da volúpia residiam as mais estimulantes palavras. Os cheiros e os fluidos quentes entrelaçavam animalidade com paixão. O toque na pele alheia transformava todo o corpo num latejante órgão sexual. Esta enorme assimetria tornava qualquer envolvimento sempre injusto para a outra parte. Apesar dos parceiros se iludirem, pensando ser os responsáveis por tais êxtases, cada acto não passava de masturbação assistida. Isto inevitavelmente levou a uma vida de promiscuidade, mas essa conduta começou a ser mal vista pela comunidade, que acabou por condená-la a uma vida marginal, de clausura social. Começou a ter cada vez menos contactos, até porque muitas vezes resultavam no insulto fácil e na humilhação, e acabou por se isolar dos restantes.
Após vários anos de vivência como pária, apareceu junto a sua casa, situada nas proximidades do mar, seu único confessor, um rapaz que não reconheceu. Aproveitou o facto de ele não a ver para apreciar o vigor dos seus passos e distinguir o seu cheiro, deveras aprazível e diferente de todos os que tinha experimentado. Todos os dias, sempre que o detectava, ia dissimuladamente espiá-lo. Começava a traçar pormenores, a deixar-se consumir lentamente pela curiosidade e pelo desejo de ouvir a sua voz e sentir a sua mão. Para tal, escolheu um dia ameno para se sentar no alpendre. Após alguma espera, sentiu o rapaz a aproximar-se e, como o impulso sonoro do radar em crescendo de frequência, o seu coração acelerava. Quando estava junto da escada da entrada, dirigiu-lhe a palavra:
- Desculpe, por acaso não tem chá?
Fez tábua rasa ao julgamento dos seus pares e respondeu:
- Tenho, sim. Aliás, ia agora mesmo fazer um. Aceita um marroquino?
- Muito obrigado, é muito gentil.
- O meu nome é Criba – disse, estendendo-lhe a mão.
- Siltu. É o meu nome. Era o nome do meu avô também. Que coisa mais antiquada, não acha?
- Nem por isso. A minha avó também se chamava Criba – acrescentou, mentindo.
Foi para dentro, trouxe o chá para o alpendre e falaram durante horas. Como Criba conhecia e movia-se tão à vontade no seu pequeno universo e evitava dirigir o olhar para onde a voz de Siltu provinha, este não se apercebia da sua incapacidade. A partir dessa altura encontravam-se todos os dias, passeavam enquanto exploravam afinidades, riam enquanto a percepção mútua se aprofundava, sentiam o mar, cada um à sua maneira, enquanto se encantavam. O amor brotou naturalmente.
Siltu era reservado em relação à sua intimidade, e este retraimento era respeitado. No entanto, era inevitável a consumação física do forte sentimento que nutriam. Na primeira noite que dormiram juntos, Criba não mais experimentou aquela luxúria exacerbada que lhe invadia o cerne. Agora o fluxo não era de fora para dentro, mas no sentido inverso. Sentia necessidade de dar mais do que recebia. O equilíbrio de que nunca careceu fazia agora mais sentido que nunca. Aliviava-se da culpa pelos seus comportamentos passados, como se essa censura alguma vez fosse legítima. Siltu era a sua fonte de bem-estar, harmonia, vigor.
Certo dia, depois de horas passadas no leito, propôs Criba:
- Quero apresentar-te aquele que partilha o meu amor contigo.
- Quem? – perguntou, intrigado, tentando afastar a ideia que uma terceira pessoa poderia repartir aquela felicidade.
- Vem comigo.
Levantaram-se da cama e dirigiram-se, nus, para a porta de casa. Criba conduziu-o até ao mar e incitou-o para um banho.
- Não quero. Não insistas. Olha que o mar está turbulento.
- Confio nele plenamente.
- Deixa lá isso. Já mo apresentaste. Agora voltemos para dentro.
- Vem conhecê-lo mais de perto.
Confiante que Siltu a seguiria, não se apercebeu que ele ficou para trás, pois o ruído do oceano engolia os outros sons. Mergulhou nele enquanto Siltu esbracejava ao longe, avisando-a do perigo. Uma série de vagas colheu Criba, atirando cruelmente o seu corpo contra as rochas. Siltu permaneceu estarrecido, em parte devido à perda que despedaçou o seu peito, em parte devido ao remorso por nunca ter aprendido a nadar.

XXXIV



O ouvido sedento sacias
Amparas minh'alma na mão
Viajante de noite e de dia
Sem tirar os pés do chão.

Em teu corpo me contorço
E teu encanto me ataca
És luxúria sem remorso
Embriaguez sem ressaca

XXXIII



Quando, numa relação, há cedências de parte a parte, essas são mais facilmente perceptíveis (e passíveis de ser contabilizadas) pelo cedente. Quando esse equilíbrio se perde, normalmente o conjunto de cedências é utilizado como um trunfo. Aí ou perde-se a jogada e espera-se melhor sorte na próxima mão ou desiste-se do jogo.

XXXII



Da minha janela observo muitas coisas. À noite, vejo o vizinho embriagado a bater na mulher e, de manhã, esta a colocar pequenas quantidades de soda cáustica no café. Os miúdos brincam na rua, maltratam os cães e ajudam os progenitores com as compras e com a lida do comércio. As velhotas gémeas tratam dos gatos, alimentam os cães, rezam e vão à missa todos os dias, como se isso pudesse apagar os seus passados recheados de mentiras e maldades. Os gatos, por sua vez, atacam as pombas que corroem as arcadas e roubam os peixes expostos nas bancadas. Os vendedores inflaccionam preços como se de taxa de conversa ou atenção se tratasse. As raparigas provocam os rapazes e estes respondem com piropos desajeitados, contrariando as leis da atracção de umas e fermentando os desejos ligeiramente perversos de outras. A janela aberta para este mundo apenas me provoca um calafrio na raiz do cabelo. Para já não há sensação nem juízo. Apenas observação e registo. O torpor, depois de se apoderar do corpo, alojou-se na minha mente.

XXXI



Na solidão do seu escritório, quando já todos tinham regressado às suas casas, Timoc mergulhava num mundo virtual, uma “second life” sem grandes enredos nem artifícios. Acedia a chats, fóruns, blogs e sites de partilha, assumindo-se como outra pessoa, gozando da liberdade inconsequente e protegendo-se com o escudo do anonimato. Conhecia imensa gente, o que contrastava com a sua parca sociabilidade. Aqui não se sentia espartilhado, as regras eram moldáveis ou imperceptíveis. Podia facilmente enganar alguém sem o confronto dos olhos nos olhos e sem o remorso. Quando alguma questão moral se lhe levantava, rebatia tudo com o argumento da reciprocidade, convencido que todos estariam nesse subterfúgio sob as mesmas intenções e entendimentos, como se de um convénio secreto se tratasse. Assim sendo, as relações eram superficiais, breves, jocosas e descartáveis. Chegou a manter algumas com alguma persistência e sedução, mas apenas para a ruptura ter mais impacto. Normalmente eram mais numerosas as suas investidas cruéis e os jogos ardilosos por si controlados que os danos infligidos por outros. Era meticuloso o suficiente para despistar quaisquer desconfianças sobre pormenores e dados da sua vida real. A sua falsa persona era magnética o suficiente para atrair pessoas de todos os sexos, credos, línguas e convicções. Nem sempre o conseguia, mas a sua taxa de sucesso era notável. Por isso sentia sempre esse prazer pérfido, que se renovava todas as noites, muitas vezes pela madrugada adentro, dormindo apenas poucas horas no sofá do gabinete.
Certo dia foi abordado por um colega do departamento de informática. Queria falar-lhe sobre a gestão de conteúdos dos seus trabalhos nocturnos. Salientou-lhe o facto dos softwares utilizados e endereços constantes na lista não serem os convencionados nas rotinas.
- Sabe, isto não é uma advertência, é mais uma constatação.
- Como assim? – inquiriu Timoc, intrigado.
- Eu próprio utilizo os mesmos recursos. Pode-se mesmo dizer que vivo em dois mundos.
- A sério? Até que ponto?
- Não se faça de despercebido. Sou algo experiente neste campo e até lhe adianto que travou conhecimento comigo várias vezes. Apenas precisei de alguns cruzamentos e deduções para confirmar que se tratava de si.
- Não sei do que fala – disfarçou, engolindo em seco.
- Apesar dos ludíbrios que me dirigiu, não o censuro. Até o admiro.
- Admira? – perguntou timidamente e com tom de surpresa, pois tudo isto soava a novo nesta realidade tangível, onde se sentia completamente desarmado.
- Sim. Eu próprio actuo e planeio de forma semelhante. Até me atrevo a propor-lhe algo inusitado. Que tal se nos aliássemos nessas incursões?
A ideia pareceu-lhe um pouco despropositada, mas a possibilidade de partilhar algo com alguém com as mesmas pretensões tinha algo de atraente. O medo inicial deu lugar à excitação do risco.
- Porque não?
A partir desse dia encontravam-se com frequência nessa dimensão alternativa, onde tudo era possível e permitido, e uniam esforços para obter satisfações e proventos acrescidos. Isso fez crescer dentro deles um desejo mútuo, não sei se voluptuoso se platónico, que nunca se viria a consumar neste plano.

XXX



A originalidade verbal tinha sido apagada dos hábitos de Barquil. A morte prematura do seu pai, sua referência literária durante os anos de infância e adolescência, fê-lo questionar toda a sua actuação e forma como lidava com as palavras. Todas as expressões já tinham sido criadas, e ele não se sentia suficientemente inteligente para ser autor de uma qualquer frase inédita. “Para quê, se tudo o que é importante já foi ou será inventado por outrém? Não serei eu que farei a diferença nem mudarei a vida de ninguém por algo que profira.”. Esta espécie de anti-niilismo começou a reger a sua vida. De início, o esforço intelectual e de memória era esgotante, uma vez que tinha que adequar uma citação de algum vulto artístico ou político para se poder exprimir. Após algum tempo já tinha agilidade mental suficiente para que, com pequeno esforço, pronunciar material alheio, da mesma forma que o comum mortal refere chavões e estereótipos, mas noutro plano. Porém, este tipo de atitude não foi sendo bem aceite pelos demais, evoluindo para uma incompreensão geral dos concidadãos e um especial repúdio por parte dos intelectuais da terra. Barquil tornou-se uma espécie de pária, sendo apenas abordado como objecto de zombaria. Ainda assim, via estas últimas atitudes como preciosas oportunidades de comunicação. Certo dia, enquanto estava absorvido nos seus pensamentos próprios sentado num banco de jardim, foi abordado por uma rapariga com uma expressão que lhe causou algum impacto. “A natureza concedeu aos grandes homens a faculdade de fazer e aos outros a de julgar” (1). Disse isto e desatou a correr. No dia seguinte surpreendeu-o com “É melhor que fale por nós a nossa vida, que as nossas palavras” (2). Seguiu-se “Se soubéssemos quantas e quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas, haveria muito mais silêncio neste mundo” (3). E todos os dias repetia-se o ritual, só que a horas diferentes, apanhando Barquil desprevenido. “Aquele que nada espera da vida, goza como uma surpresa o que ela lhe pode dar” (4), disse ela, gozando quando o apanhava de sobressalto. O conhecimento mútuo de tais palavras fez fermentar uma paixão pela rapariga. Começou a retribuir-lhe com ditos e máximas. A “O passado e o futuro parecem-nos sempre melhores; o presente, sempre pior.” (5) respondia com “O amor é a única paixão que não admite nem passado nem futuro”(6), e a “A vida é um sonho, mas sonhar não é viver” (7) contrapunha com “O amor é um sonho que chega para o pouco ser que se é” (8). Esta espécie de contestação começou a surtir algum efeito, uma vez que a espera pela correspondência era mais demorada e a brusquidão ia-se extinguindo nas suas aparições. Ao fim de vários dias, semanas ou meses (aqui o fio temporal deixou de ser mensurável), ela entrou no seu cenário em silêncio e sentou-se ao seu lado. “Amar é também agir” (9), lembrou Barquil. Levantou a cabeça e olharam olhos nos olhos. Beijaram-se. Culminou num “Amo-te”. Esta expressão de autor desconhecido nunca lhe pareceu tão original. A partir desse dia a sua vida passou a ser um inédito.

Autores citados:
(1) Luc de Clapiers Vauvenargues;
(2) Mohandas Gandhi;
(3) Oscar Wilde;
(4) Condessa Diane;
(5) William Shakespeare;
(6) Honoré de Balzac;
(7) Christiaan Huygens;
(8) Fernando Pessoa;
(9) Saint-John Perse.

Este post teve a preciosa ajuda do Citador e do Pensador.

XXIX



A gosta de B.
B gosta de C.
C gosta de A.
Até aqui, nada de novo. Um vulgar triângulo amoroso.
Mas eis que aparece D.
Seduz A, e a paixão por B desvanece.
D fo*e A.
A apaixona-se.
D dá com os pés em A.
C aproxima-se de A para reconfortar.
A apaixona-se por C.
D seduz C.
D fo*e C.
C dá com os pés em A.
A desolação apodera-se de A e suicida-se.
C é apossado por um sentimento de culpa.
D dá com os pés em C.
C fica destroçado e refugia-se em B.
C apaixona-se por B, e vice-versa.
D tenta seduzir B.
B repele investidas de D.
D apaixona-se por B.
D seduz B em estado de embriaguez.
C surpreende B na cama com D.
C dá um tiro em B e D.
C anda a monte.

XXVIII



Quando foi inventado um lugar-comum, vulgo cliché, não se fazia ideia que tinha nascido e nem tinha tempo suficiente de vida para se lhe reconhecer validade. Hoje em dia, quase todos os clichés foram inventados e são usados comummente. Se nós temos consciência deles, mesmo até antes de os utilizarmos e até evitarmos o seu uso, apesar da tentação, porque insistimos em perpetuá-los? Porque não os reformulamos? Porque (agora vem aí um) é que a história repete-se?

XXVII



Desconfio que o gráfico da função paixão = f(exposição) é uma sinusóide ou uma parábola. Também acho que reduzir isto a uma função bidimensional é demasiado simplista.

Paixão
Exposição

XXVI



Enquanto criança, Dalazin não questionava o ritual da castração. Todos os rapazes da sua ala tinham esse destino. Era a tradição, algo que aparentemente justificava ou anulava as dúvidas. Este condicionamento desde tenra idade nunca o tinha feito contestar o rígido modelo social. Até ao dia em que começou a trabalhar para Nizalad. Tendo ficado viúva pouco depois do seu casamento, esta bela e jovem senhora vivia no seu abastado palacete de barro, onde geria a riqueza herdada de forma muito eficiente, por entre criações de gado, campos de tamareiras, uma tinturaria e uma olaria. Para além de todo o apurado sentido comercial, Nizalad era grandemente acariciada pelas pessoas da aldeia pela sua bondade, honestidade e sentido de justiça. Empregava a maioria das pessoas do povoado e praticava a caridade simultaneamente como obrigação moral e como investimento social. Dalazin foi destacado para criado pessoal da benfeitora, e desde logo o fascínio se encetou. Para além de todas as qualidades que se conheciam, a sua ama revelava-se extremamente doce e encantadora com quem privava da sua companhia. Como criado pessoal, partilhava da intimidade com a sua senhora, tornando-se seu confessor e, até certo ponto, seu amigo. Ouviu falar dos seus projectos, do contágio pela felicidade alheia, da forma simplista e determinada com que governava e estabelecia uma relação simbiótica e natural com os seus trabalhadores. Também pôde escutar da sua boca como a solidão lhe pesava, o quanto a saudade lhe era penosa e que o seu coração aguardava um hóspede. Este misto de encantamento e compaixão levou Dalazin a ambicionar esse lugar vago, e sabendo-o inacessível apenas fazia prolificar o seu desejo. Confundiam-se-lhe os conceitos de proibição e impossibilidade, mas progressivamente iam-se apartando, o que permitiu que uma certa lascívia germinasse.
Certo dia, estando a senhora entretida com os seus papéis, chamou Dalazin e pediu-lhe um chá. “Traz mais uma chávena”, acrescentou. “Beber um chá é como fazer amor”. “Como assim, minha senhora?”. “Partilha-se algo íntimo com alguém que se ama. Como se subtraísses o desejo carnal, restando apenas a entrega, a cumplicidade, a ternura. Não me imagino a tomar chá tranquilamente e de forma prazenteira com alguém que não ame.”. “Senhora, isso quer dizer que…”. “Sim, Dalazin. Isso que estás a pensar. Julgavas que era apenas num sentido?”. Nisto, o desejo toma conta de Dalazin e beija impetuosamente a sua senhora. Esta repele-o e adverte-o com a mesma energia. “Não te admito tal atrevimento. Porque me fizeste isso?”. “Mas senhora, eu pensei que…”. “Pois pensaste mal. Deverias ser mais prudente e ter analisado o que te confessei. Agora, esquece tudo o que te disse”. Dalazin sai, desolado e trespassado pela dor da fustração de não poder consumar o amor pela mulher cujo nome é a capicua do seu. Foi sem rumo pelo deserto, na esperança que uma tempestade de areia lhe roube esta vida sem sentido.

XXV



- Próximo!
- Sou eu. Até que enfim!
- A culpa não é minha. As pessoas deixam tudo para a última hora. É mesmo típico dos portugueses.
- Não pude ver mais cedo. Aqui estão os documentos.
- Hummm… Deixe cá ver… Está aqui o impresso… Os certificados… Deixe-me verificar melhor…
A esperança de estar tudo em condições contrastava com o desespero de quem aguardava. O tempo passava devagar naquele antro de burocracia, enquanto a funcionária percorria toda a documentação, como se a caça às irregularidades se tivesse tornado um desporto aceite pelo Comité Olímpico Internacional.
- Está tudo bem. Vou-lhe passar o recibo…
- Mas não lhe falta o comprovativo de caução? - interrogou alguém nas suas costas.
- Que cabeça a minha. Tem toda a razão! Tem-na aí consigo?
Virou a cabeça para trás com um rosto increpador. Retomou as feições e enfrentou a empregada.
- Não tenho a certeza. Meu Deus! Como me fui esquecer?
Procurou, exasperado, pelo papel na sua pasta. Revolvia tudo, com a fila interminável como plateia. Quando estava prestes a rebentar e a insurgir-se contra toda aquela situação, encontrou a maldita folha.
- Aqui tem. Espero que não falte mais nada.
- Vou só verificar mais uma vez…
O ritual repetiu-se, para angústia de todos.
- Pronto. Está tudo. Tome lá o recibo.
- Obrigado.
Sai porta fora, respira o ar exterior com uma visível sensação de alívio. Começa a caminhar pelas ruas como se tivesse injectado uma dose de vida. Parecia que levitava e que, durante aqueles momentos, nada o inquietava, tal como Sermin no alto do monte. Nisto alguém lhe chama a atenção, tocando-lhe nas costas. Virou-se e deparou com o sujeito que tinha chamado a atenção por causa do comprovativo. Desceu à Terra e perguntou amargamente:
- Que me quer agora? Atrasar-me novamente?
- Não. Apenas vim devolver a mala que se esqueceu na repartição.
Reconhece a sua mala. Nesse momento, um impulso eléctrico accionado por um relógio faz detonar o explosivo plástico da mala, relançado o protagonista novamente para o éter.

XXIV



O desprendimento material é algo fascinante. Não no sentido da pobreza franciscana nem de uma forma demasiado lata, mas em pequenos gestos do quotidiano. Para quê dar demasiada importância a certos objectos que não possuem qualquer valor sentimental? Mesmo aqueles pelos quais nutrimos alguma estima apenas são representantes de um momento, de uma pessoa ou de um estado, servindo como auxiliares de memória. Em relação aos primeiros, se se assumir esse desapego e o levar um pouco mais além, conseguem-se situações hilariantes e, até certo ponto, imprevisíveis.

XXIII



No cume daquele monte, Sermin sentia-se verdadeiramente livre. Quando saía de manhã para pastar as ovelhas, sabia que essas horas de independência alimentariam o seu espírito por mais um dia. Nada lhe dava mais prazer que o ócio. Apenas tinha que desviar o olhar de vez em quando para vigiar o rebanho, mas a despreocupação instalava-se, uma vez que Gurm, o seu fiel cão, cuidava para que não houvessem dispersões. Naquele lugar singular, sentia o sol acariciar a face e sucediam-se os sussurros ao ouvido pelos quatro irmãos, Bóreas, Zéfiro, Noto e Euro. Viajava errante nos seus pensamentos e a altitude ajudava-o a perder a noção de peso. Conseguia ir a qualquer lado sem se mexer e isso preenchia-o por completo. Não necessitava de nada nem de ninguém.
Certo dia ouviu alguém chamar o seu nome ao longe. A voz foi-se aproximando. “Sermin, Sermin”, gritava. Aos poucos regressou do seu estado semi-consciente. Como alguém se atrevia a resgatá-lo do seu mundo? Finalmente avistou o seu vizinho, visivelmente ofegante. “Sermin, aconteceu algo terrível!”. “Algo mais terrível que esta intermissão?”, pensou. “Houve um incêndio… Os teus pais… como te dizer?... Padeceram… Não resistiram… Lamento imenso, rapaz.”. “Não pode ser!”, vociferou incrédulo. “Verdade. Foi horrível. Foram apanhados no mar de chamas. Lavrou-lhes os campos, a cabana e a vida.”. Um ar de consternação instalou-se e Sermin afastou-se para chorar. O vizinho tomou a sugestão e partiu. Sermin recompôs-se, deitou-se no chão e rendeu-se à sua condição de sonhador. A calma avassalou-o de tal forma que deu por si a pensar “Perfeito. Agora não preciso mais de voltar para casa.”.

XXII



Versão 1.0
T. J. Bug, escritor famoso, dirigiu-se à família: “Entrei em bloqueio criativo. Não me sai nada da cabeça.” Mulher e filhos liam o desespero na sua atitude e expressão, mas acolheram-no com um olhar compreensivo. Queriam tentar ajudá-lo, servir de alguma forma de fonte de inspiração. Tratavam-no bem, faziam-lhe as vontades, evitavam os atritos, encorajavam-no com palavras entusiásticas, não lhe cobravam o tempo investido. Por vezes, T. J. sentava-se na sua escrevaninha, onde permanecia algum tempo sem nada escrever, para depois regressar com um olhar taciturno, num ritual de comiseração. Decorreram dias, semanas. A entrega dos próximos era total e incondicional, sem oscilações nem contestações. Um dia fechou-se no seu escritório e lá permaneceu durante horas a fio com o seu laptop. Ao fim de quase um dia, abriu uma gaveta e tirou de lá um maço grosso de folhas impressas. Destrancou a porta e mostrou a obra à família. Eles rejubilaram e abraçaram-no. T. J. sabia que estava a vampirizá-los, mas não lhe causava qualquer remorso.

Versão 1.1
T. J. Bug, escritor famoso, dirigiu-se à família: “Entrei em bloqueio criativo. Não me sai nada da cabeça.” Mulher e filhos liam o desespero na sua atitude e expressão, e deixaram-se contagiar por essa angústia. “Que fazemos agora? Como te podemos ajudar? Com certeza não esperas que vá escrever por ti!”. Estas palavras amargas apenas deixaram-no mais vazio e despojado. Nos dias que se seguiram, todos o tratavam com rispidez, como se a sua inspiração constituísse uma obrigação familiar. Sentia-se diminuído, e isso ia-lhe provocando uma raiva refreada e crescente. Dias, semanas passaram-se, e essa impotência ia-o sufocando lentamente, agudizada pela censura dos seus próximos. Quando sentiu que não aguentava mais, fechou-se no seu escritório e lá permaneceu durante horas a fio com o seu laptop. Escreveu com uma avidez incrível, canalizando toda aquela revolta para o seu enredo. Ao fim de quase um dia, tinha a sua obra pronta. Destrancou a porta e mostrou a obra à família. Eles acenaram em aprovação. Sabiam que estavam a vampirizá-lo, mas não lhes causava qualquer remorso.

XXI



No ambiente fumarento do cabaret, nada era diferente dos dias anteriores. Todos esperavam a actuação de Rèlinne. A música da banda entretinha os ouvidos e preenchia o espaço entre as conversas regadas a whisky e cocktails. Uma lascívia ébria germinava das tentativas de sedução. A elegância andava de mãos dadas com a decadência.
- Damas e cavalheiros, Rèlinne!...
Em simultâneo, todas as atenções afunilam para o pequeno palco. Mesmo um mero observador exterior a este tipo de ambientes desviaria a atenção dos seus juízos para os seus sentidos. A chanteuse possuía uma presença magnética, evidenciando uma beleza fora do vulgar e um charme exalante que dominava as sensações. O piano e o contrabaixo quebram o silêncio. Então a voz de Rèlinne é suavemente solta, envolvendo os presentes com o seu timbre firme e aveludado. A emoção impressa e a sensualidade sugerida compõem um filigrana que arrebata corpo e alma. As figuras estão tão inebriadas e absorvidas que se esquecem de tudo à sua volta. A sua voluptuosidade quebrou todas as continuidades do salão e, naqueles momentos, todos lhe pertenciam. Ao fim do primeiro tema, a conquistada audiência desfaz-se em aplausos e elogios. Neste breve momento, Rèlinne avista um rosto familiar na audiência. Um homem de aparência consumida e penosa. Enquanto retomava o repertório e concentrava as atenções, veio-lhe à memória a identidade da figura reconhecida. “É ele! Oh, meu Deus! Que faz ele aqui?”, pensou. Após o espectáculo, retirou-se para o seu camarim. Bateram à porta, e o aderecista avisou que havia alguém que lhe queria falar, ao que pediu para o deixar entrar.
- Senta-te, Luq! - proferiu sem se voltar.
- Olá, Rèlinne! Como estás, depois destes anos todos?
- Bem. Não passei os últimos 20 anos encarcerada, ao contrário de ti.
- Paguei pelos meus pecados. Tu sabes bem disso.
- Qualquer castigo nunca será suficiente. Há crimes que não se compensam. Não te sentes arrependido?
- Sim. No momento seguinte à consumação já me lamentava. Sabia que te iria perder para sempre.
- Privaste-me do homem que iluminava a minha vida, que me fazia sentir viva. Para isso não há perdão. Se bem que, caso isso não tivesse acontecido, nunca me teria refugiado na música e não estaria tão realizada como estou hoje.
- Nem tudo foi mau, então.
- Não te compete avaliar isso.
- Rèlinne, o tempo não te dissipou o rancor?
- Claro que não. O desejo de vingança estava apenas adormecido.
Rèlinne vira-se e pôde-se ver a ira estampada na sua face rubra.
- Ao ver a tua face, o gigante acordou. E agora vai destruir-te.
Num ápice levanta-se e lança-se a Luq de punhal na mão. Ele detém-na e afasta a arma. Ao voltar para o seu lugar, olha-o através do espelho.
- Agi por impulso. O ódio é como o amor. Leva-nos a fazer coisas extremas.
- São emoções viscerais, pois anulam a razão e a auto-estima. Mais cedo ou mais tarde alguém sai magoado. Ambos induziram-me a fazer algo hediondo há 20 anos atrás. Não cometas o mesmo erro.
- Não voltarei a ser a mesma depois de hoje. Maldito sejas!
- Vou-te deixar em paz. Não pretendia acordar os fantasmas.
Luq sai porta fora e Rèlinne desata num pranto irreprimível. Sentia que a consternação contaminaria a sua vida futura, tornando vivas as memórias angustiantes da perda e da falta de concretização. Nenhuma bondade conseguiria indemnizar esse intuito desperdiçado.
- Maldito sejas! Mataste-me duas vezes. E tu continuas vivo.

XX



Se alguém depejasse uma espécie de soro no depósito de água municipal que compelisse as pessoas a contar os seus segredos, aumentariam os suicídios, as depressões pareceriam pandemias e um sentimento de loucura colectiva minaria as relações pessoais e sociais. Mas uma coisa não entendo. Como a perplexidade perante os segredos dos outros não se sobreporia ao enleio da nossa própria exposição, que razão teríamos para nos preocuparmos, caso reagíssemos racionalmente? Por mais sórdida que fosse a revelação, esta seria abafada pelo auto-consumição dos que nos rodeiam.

XIX



Na rua ouviam-se gritos de pânico. O incêndio estava a consumir os últimos andares, encurralando quem lá se encontrava. Uma multidão assistia ao episódio, num misto de comiseração e regozijo mórbido. Por fim os intrépidos bombeiros alcançaram uma janela no topo do prédio, iniciando o resgate daqueles reféns da angústia. Quando julgavam que o trabalho estava concluído, o que quase coincidia com a missão final das chamas, ouviram um pedido desesperado noutra janela. Uma mulher segurava um bebé no colo, protegendo-o do fogo iminente. Crasmo, o bombeiro mais próximo, manobrou com urgência a escada. A uns escassos metros, a mãe bradou "Salve o meu filho. Eu não tenho hipótese". "Deixe-me aproximar e salvo-a a si também.". Apenas teve tempo de atirar o seu rebento para os braços de Crasmo. "Diga-lhe que a mãe dele se chamava Jamar. A parte do amor é implícita". Nesse momento começou a ser consumida pelo calor extremo e pela combustão, mas reconfortava-a saber que as suas lágrimas iriam apagar tudo isto.

XVIII



Ela acende um cigarro e pergunta-lhe:
- Se o mundo acabasse amanhã, o que farias hoje?
- Nem sei que te responda. Só me ocorre aquele lugar-comum de passá-lo com a pessoa que mais amas, tentar reconcílios, concretizar o continuamente adiado, ter a coragem de dizer o indizível ou o políticamente incorrecto. Sei lá, tanta coisa.
- No teu caso é um lugar-comum bastante abrangente. Não conseguirias concluir isso tudo num só dia.
- Provavelmente não. Mas num prazo mais alargado, talvez.
- Sou aquela que encaixa no perfil da pessoa com quem passarias esses últimos tempos?
- Sabes bem que sim. O mundo sem ti perderia o sentido. Ou, pelo menos, grande parte dele.
- Então vai-te habituando à ideia, pois o meu médico deu-me três meses de vida.

XVII



Um barco desce rio abaixo transportando um passageiro. Deitada ao centro, Anulit projecta a sua graça na madeira, como se de uma coreografia estática ou de um fotograma dinâmico se tratasse. Se alguém conseguisse vislumbrar a sua face, veria nela espelhada um sorriso denunciador. Anulit e o rio pareciam um só, plácidos e fluidos. Como narrador omnisciente, posso vasculhar as memórias recentes de Anulit. Vejo a descoberta do amor, o êxtase da união, o fruição de um cosmos reduzido e reservado, o ímpeto da entrega, o culminar físico de um arrebatamento espiritual. Se pudesse e quisesse analisar, diria que esta perfeição resulta da soma das imperfeições. O seu coração vai palpitando mais depressa, acompanhando a velocidade do leito. “Não distingo a paixão da apreensão”, pensou. A aceleração toma conta da embarcação, antevendo uma inevitabilidade. Subitamente, o bote abranda e pára. Anulit volta a si, ergue o tronco e entrevê uma figura envolta na contraluz.
- És tu, meu amor?
- Sim - responde a voz masculina. - Como vieste aqui parar? Não sabes que este caudal é perigoso? Aflige-me ver-te em apuros.
- Como poderia estar em apuros? Esta felicidade é tudo o que poderia desejar. Não mais me sentirei assim na vida. São momentos únicos.
Antes que algo possa ser feito, Anulit levanta-se, o corpo lânguido cai à água e é abraçado pela torrente violenta da cascata.

XVI



“All I ever learned,
All I ever earned,
Is bent by your speech.
Exception’s made
when we all fade,
That’s one thing you can’t teach”
(Refrão alternativo para “Enjoy The Silence”, original dos Depeche Mode).

XV



Porque será que se aceita tão facilmente a injustiça que consiste em que se ame mais os filhos que os pais? Constituirá isto uma espécie de herança emocional, passada de geração em geração? Apesar de biunívoca, esta correspondência é assimétrica. Assim de repente, a única analogia que encontro é com as praxes académicas.

XIV



Viver em constante turbulência era habitual para Horeme. Por isso não estranhava que os seus sentidos o bombardeassem com alertas de perigo e sinais mudando rápida e vertiginosamente, incitando uma necessidade persistente de movimentos bruscos, rápidos e reflexivos. Devido a esta curiosa vivência desenvolveu uma desconfiança sistemática e um sistema de defesas complexo. Mesmo nas situações em que se poderia sentir seguro não baixava a sua guarda, jogando tudo para o campo das falsa aparências. Certo dia caiu inconsciente devido ao stress e à extenuante exposição a demasiados factores. Claro que isto só aconteceu devido à anormal presença humana na biologia de Horeme. Quando recobrou os sentidos apenas pôde sentir as garras de uma águia a comprimir-lhe as entranhas. O último pensamento do roedor já não foi dominado pelo medo. Era um misto de libertação e de abandono.

XIII



Talvez seja um disparate julgar que um bem comum se sobrepõe a um objectivo pessoal, uma vez que há quase sempre um sacrifício individual envolvido. O melhor método é fazê-los coincidir através da manipulação.

XII



Algo parecia estranho a Jamenoi naquela noite. Tinha uma daquelas sensações sem explicação que comummente se designam de intuição. No jardim apenas as luzes de iluminação pública denunciariam uma possível presença. Viver sozinho no monte tem destas desvantagens, principalmente para quem é paranóico. "É terapêutico", explicou ele a todos quando tomou a decisão de comprar a casa. Até já se tinha habituado aos sons estranhos que quebram o silêncio e às ilusões provocadas pela penumbra, mas o fantasma de outra alma nunca lhe tinha parecido tão palpável. Saiu porta fora com o intuito de vencer o medo e provar mais uma vez que tudo não passava de uma impressão. Contornou a casa, sondou e por fim respirou de alívio. Aí sentiu um arfar em crescendo atrás dele. Uma mão pousou-lhe no ombro ao que Jamenoi desatou a correr em direcção à porta, com o coração na boca. Tropeça no ladrilho, abre a cabeça na maçaneta, cai redondo no chão e sangra abundantemente.

XI



Porque cantar é algo tão sobreutilizado quando não há outros instrumentos, sugiro que se use mais vezes o corpo como elemento percussivo. Inaugure-se o karaoke de palmas, fomente-se a proliferação do sapateado, componham-se peças para bofetada e cachaço, organizem-se festivais de sons de boca e perna, bata-se mais vezes no cabedal das costas e nas curvas do traseiro com compasso, imprima-se vigor e ritmo no estalar dos ossos, grave-se o som dos corpos em sintonia no acto sexual.

X



“Sinceramente não me lembro de ti. Lamento.”
“Nem sabes como isso me deixa triste. Tantos anos em comum por água abaixo.”
“O pior é que nem sinto essa lacuna. Lamento imenso ter-me estampado com o carro naquela noite.”
“A culpa não foi tua. Ninguém poderia adivinhar que perderias parte da tua memória. Mas vou continuar a esforçar-me. O amor que sinto por ti há-de recuperar esse passado.”
“Achas que eu valho a pena?”
“Nem que morra a tentar.”
Abraçam-se. A figura acamada esboça um sorriso covarde e calculista.

IX



Se não os podes vencer, junta-te a eles. Aí serás julgado e condenado.

VIII



Mastodontina estava farta de viajar. Tinha visitado imensos países nos cinco continentes, lidado com povos diversos, assimilado culturas milenares e contemporâneas, dominado línguas estranhas e dialectos insondáveis. Deslumbrou-se com mares cristalinos e densos, montanhas altas e albas, florestas densas e férteis, cidades luminosas e intensas, desertos claros e infindáveis. Em 80 dias deu várias voltas ao mundo e em 8 anos conheceu o que a maioria das pessoas não conhecem em 80. Contudo, nada disto adianta a quem tem um coração com um vazio do tamanho do mundo.

VII



Antigamente usava-se o telefone para combinar encontros ou para matar saudades ouvindo a voz de alguém distante. Hoje apenas servem para desmarcar encontros, alienar a atenção dos presentes, fomentar a falta de respeito, incomodar com a sua ubiquidade e potenciar cancros (aqui inclui-se a inveja).

VI



Quando os dois cães se encontraram junto ao caixote do lixo envolto na penumbra e no frio nocturno, sabiam que a disputa por aquele osso suculento seria renhida. Provavelmente o esforço dispendido na luta não iria ser compensado pelo que seria ingerido. Que se há-de fazer? Está na natureza deles. Após ser declarado um vencedor, este inicia o repasto num canto do beco. Ouve-se a lâmina de um cutelo rasgar o ar antes de fazer o mesmo à cabeça do canídeo. “Quando o cabrito escasseia, come-se cão à ceia”. Que se há-de fazer? Está na sua natureza.

V



Para as mulheres ao volante não há meios-termos: ou conduzem muito bem ou muito mal.

IV



Jonas jantava sozinho, quando ouve alguém a bater à porta.
“Abre, sou eu.”, proferiu a voz familiar do outro lado.
“Que fazes aqui a esta hora?”.
“Vim apenas desfazer uma dúvida: continuas a amar-me, mesmo com este revólver na minha mão?”.
Apesar de responder que sim, Jonas enganava-se a si mesmo enquanto sentia a dor quente e líquida infligida pelas balas.

III



Teríamos muito mais tempo livre se pudéssemos não dormir, não comer e não amar. Rai’s partam as necessidades!

II



Um homem e uma mulher decidem medir a efemeridade dos seus actos e das suas vidas. Para tal decidem morrer e transferir essa avaliação para terceiros. Ela é escritora, ele é ilustrador e ambos formam uma dupla de sucesso há imensos anos. São casados e a felicidade sempre pairou sobre eles. Nunca tiveram uma discussão, excepto no que diz respeito a esta competição absurda sobre a persistência da memória. O resultado será divulgado a seu tempo pelo júri constituido pelos seus três filhos menores.