XLV



Pelomenoi, uma ilha situada no maior dos oceanos, foi atacada por um flagelo. Uma doença, semelhante à praga que o deus cruel de Moisés fez descer sobre os primogénitos do Egipto, atacou os infantes deste povo pacífico. Alastrando como tinta sobre papel absorvente, foi privando famílias das suas fontes de alegria. Os rostos sem expressão e os olhos consumidos pelo negrume afiguravam-se nos pais, como se as almas tivessem sido sugadas. Muitos sucumbiam à dor insuportável de um pedaço arrancado à sua carne. Outros procuravam superá-la pela solidariedade. A impotência da Medicina ampliava o desespero e ondas de histeria e revolta iam irrompendo um pouco por todo o lado. Poucos dias depois do infanticídio ter começado, a peste já tinha ceifado mais de metade das curtas vidas. Os recreios estavam vazios, nas ruas reinavam o silêncio ou o pranto, os sorrisos eram obliterados, a alegria foi engolida pela terra, o futuro ficou congelado. A própria Natureza fez-se acompanhar de sintomas de declínio, com um Inverno antecipado, ocupando o lugar legítimo do Outono. A tristeza evoluiu para um estado de depressão colectiva, apagando dos corações toda a réstia de esperança que poderia aí residir. Então, tão depressa como começara, o extermínio sem justiça cessou, deixando para trás uma população desolada, marcada perpetuamente pelo passado condensado num breve período, mais negro que a própria morte.

Naxiver era uma criança comum, igual a tantas outras que viviam no lado sul de Pelomenoi. Dividia o seu tempo entre os livros, o ensino formal, ministrado pelos seus pais, a brincadeira, partilhada com os outros petizes da aldeia próxima, e ainda as aventuras imaginadas no imenso terreno contíguo ao mar que a família possuía. Organizava vigílias para evitar ataques de piratas, convocando a ajuda dos seus cães. Liderava expedições à pequena floresta cerrada, onde imensos perigos espreitavam, à espera de desafio, colocando em risco a sua vida e a segurança dos seus mais próximos. Certo dia, apercebeu-se de algo que não soube identificar nem associar. Era uma manifestação misteriosa, um alerta invisível que o avisava que algo estava errado. Muito errado mesmo. Essa sensação de desordem ia aumentando e sendo partilhada pelos seus amigos mais próximos. Num gesto altruísta, Naxiver reuniu todas as crianças da aldeia e incentivou-os a irem para as dunas, onde sempre se sentiu seguro. Sob o pretexto de um acampamento, convenceram os pais a deixarem-nos passar uns dias junto ao mar, com mantimentos e agasalhos. Cada vez mais as crianças sentiam que esse ímpeto era mais que uma simples vontade indomável. Era o mais básico instinto de sobrevivência que disparou no âmago dos pequenos seres. Chegados à praia, montaram as tendas e aí ficaram durante algum tempo. O suficiente para que aquilo, mais forte ainda que as suas biologias, desaparecesse e não os desgastasse com esse espírito permanente de alerta. Distraíam-se com algumas brincadeiras, claro, mas o fantasma do desconhecido assombrava-os. Um enorme desconforto era a menor das sensações. Uma manhã, acordaram com o raiar do sol, e o sentimento colectivo transformou-se. Uma tranquilidade, um alívio inexplicável abraçou todos os campistas, seguido por um deslumbre de quem vê o sol pela primeira vez. Quando regressaram a casa dos seus progenitores, renderam-se a todos os rituais de alívio. Deixaram-se abraçar e enxugaram as lágrimas de quem lhes deu vida. A razão para tal comoção comunitária viria a seguir, mas nenhum deles estranhou as notícias nem possíveis justificações. Aceitaram e um pacto colectivo e silencioso foi implicitamente assinado, como se de uma colonização se tratasse. Daí a uns anos isso faria todo o sentido.

5 Comments:

Blogger Menina said...

Que bom que voltaste a escrever!
Já estava farta de vir aqui e ver sempre a imagem do avião!

A tua história lembrou-me aquele filme Children of Men... viste?

Bjs
Lince

28/2/09 00:23  
Blogger Contabilista Emocional said...

Olá, Lince! De facto, sou muito irregular. Agora que falas no "Children of Men", filme que gostei muito, tens uma certa razão, com as causas misteriosas a servirem de denominador comum. Fui um pouco mais cruel neste conto.
Bj.

2/3/09 15:13  
Blogger PUTO said...

:)

18/3/09 09:13  
Blogger crackedactor said...

mais do que o children of men, lembrou.me o saramago. és aficcionado?

Abraço
João

19/7/09 19:29  
Blogger Contabilista Emocional said...

Olá, João! Não sou grande aficionado do Saramago, mas aprecio alguns dos seus livros. "Ensaio sobre a Cegueira" e "As Intermitências da Morte", por exemplo, também lidam com causas misteriosas, mas a importância das mesmas esbate-se ao longo da obra. Não sei se será isso que acontece com este mini-conto ou com o filme referido.
Abraço.

20/7/09 10:39  

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