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Kerruy saía todas as manhãs para um passeio antes de começar a trabalhar. Os aromas do orvalho, a textura fresca do ar e as cores que acordam do seu sono eram algo imperdível para ele. Não havia dia em que não descobrisse algo novo, um pormenor, um conjunto, uma parede iluminada de forma diferente, um animal que se lhe atravessava o caminho. Os seus sentidos fervilhavam por vezes com tal sobrecarga de novidades. Noutras alturas jogava com o que lhe era familiar, antecedendo o que os olhos percorriam ou adivinhando o som umas fracções de segundo antes de as formas penetrarem na retina. Cruzava-se com conhecidos, que cumprimentava serenamente, minimizando a desconcentração. Via crianças que pouco conhecem as rotinas, turistas que se deslumbravam, situações inusitadas que lhe desviavam o olhar e uma beleza ubíqua que não o cansava. Uma paixão constantemente alimentada por aqueles momentos, cenários que poderiam facilmente saturar o comum mortal, mas não a Kerruy. Depois de cada passeio, dirigia-se ao local de trabalho com um sorriso esboçado e duradouro. Alguns colegas tomavam-no por um parvo alegre, pois não vislumbravam razão óbvia para tal face prazenteira. De vez em quando, principalmente os estagiários, lá o auscultavam para encontrar a origem de tais luzes, mas revelava-se inútil. Kerruy tinha o semáforo da sua intimidade quase sempre no vermelho. Mas isso mudou quando conheceu dois novos estagiários. Putz e Raquina eram um casal alegre, acabados de se formar, cúmplices em muitas situações. Certo dia apanhou-os a comentar a luz que banhava a cidade ao entardecer. Cada um apontava um aspecto que lhe tinha captado a atenção e o outro complementava com um aceno ou outra observação ao mesmo local ou tempo. Todos os dias falavam dum assunto com pormenores e conjuntos relacionados. A curiosidade de Kerruy aguçava-se em relação àquele casal, e ainda se elevou quando trouxeram uma máquina fotográfica. Aí, para além das observações sensoriais, comentavam pormenores técnicos das máquinas. Kerruy nunca se interessou por fotografia, mas as conversas estimulavam-no. Tomou coragem e abordou-os: – Desculpem, mas não consigo evitar ouvir-vos falar das vossas fotografias. – Ora essa! É um prazer falar e ouvir falar sobre essa arte, considerada menor por tantos – respondeu Putz. – Junte-se a nós. De certeza terá algo para partilhar connosco – sugeriu Raquina. A partir daí, a conversa fluiu como nunca. Kerruy, de início, apenas fazia perguntas, típico num espírito de iniciado. O casal ressalvava o valor da fotografia e as suas virtudes na captação do momento, único, inexorável e pessoal. Apesar de pressentir que todas as qualidades do registo eram exacerbadas por aquele par de apaixonados, deixou-se embriagar pelas emoções despertadas pelas descrições e imagens poéticas. De certa forma, equivaliam-se àquelas que o faziam despertar mais cedo todas as manhãs. Pouco a pouco, ia partilhando as suas impressões das caminhadas matutinas. A enxurrada de termos e expressões entrelaçava-se com os olhares, transmitido num empenho extraordinário que não deixava escapar nada. Beirais que contam histórias, árvores que mudam de tonalidade e forma, pássaros que vigiam e entretêm o seu perímetro, pedras da calçada que parecem desenhar algo diferente todos os dias, estudantes que brincam enquanto comentam os seus exames e professores, sorrisos familiares que alternam com relances melancólicos nas mesmas faces, livros que mudam de mão, cabelos que ondulam ao vento e se cruzam com dedos, encontros que se marcam com entusiasmo, conversas que se interrompem, telemóveis que se acusam com toques surpreendentes, automóveis com ritmos distintos, sóis que se reflectem, flores que desprendem o seu perfume dos vasos dos parapeitos, cabeças que espreitam por entre as cortinas, jogos que se partilham a caminho da escola, mãos que se unem, braços que se chocam, dezenas de melodias que escapam dos auscultadores e dos assobios, peles de várias cores e brilhos, o cheiro de café, o esvoaçar dos guarda-sóis nas esplanadas, momentos intercalados, que se iniciam ou têm um desfecho, por vezes definitivo. As horas passam e a conversa jorra como uma nascente termal, quente e abundante. Dias e dias se passaram até que Kerruy é desafiado. Putz e Raquina propuseram-se fotografar uma das manhãs de Kerruy. O objectivo seria comparar as imagens directas com as induzidas. Kerruy ainda hesitou, mas reflectiu e concluiu que seria um passo natural. Combinaram logo ali que seria no dia seguinte. Apareceram munidos de máquinas e outras parafernálias. Apesar de ser um passatempo, era levado a sério pelo casal, pelo menos no que à técnica diz respeito. Depois de cumprimentar o guia, partiram então para o safari, tentando caçar os instantes de deslumbramento que Kerruy narrava. A tarefa pareceu bastante simples e os três operavam como se de uma equipa bem treinada se tratasse. Kerruy apontava o olhar, por vezes o dedo, Putz adiantava-se enquadrando a expressão, e Raquina cobria a rectaguarda, privilegiando os melhores ângulos e os planos mais próximos da perspectiva do dono do passeio. Demoravam mais tempo que a normal caminhada, isto porque a falta de contenção na captura equivalia a um ganancioso sob uma chuva de dinheiro ou a um petiz em frente a uma banca de guloseimas. Após o frutífero trajecto, dirigiram-se ao local de trabalho, chegando entusiasmados e ansiando pelo resultado da sessão. No dia seguinte apresentar-lhe-iam uma selecção de fotografias. Convidaram-no para ir ao apartamento que tinham alugado. – Desculpe a desarrumação. Mudámo-nos há pouco tempo. – Deviam ver a minha casa de solteiro! Prefiro as ideias arrumadas que os móveis da sala ou a roupa de cama. Riam descontraidamente, enquanto Putz preparava umas bebidas. Após estes momentos soltos, Raquina coloca um envelope na mesa da sala. Saca dum molho de rectângulos de papel e entrega-os ao visitante, aguardando as primeiras reacções. O semblante de Kerruy foi-se modificando enquanto desfolhava o conjunto. O horror foi-se apoderando da sua face, até que pousa secamente as fotografias na mesa. Pede licença em voz baixa e sai porta fora. – Que terá acontecido? – Seremos assim tão maus fotógrafos? No dia seguinte encontraram um Kerruy apagado, de muito poucas palavras e sem brilho nos olhos. Nunca viriam a saber que aquelas fotografias, tentativa de espelho da alma, a haviam roubado, como na história da Alice.

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