XVII

Um barco desce rio abaixo transportando um passageiro. Deitada ao centro, Anulit projecta a sua graça na madeira, como se de uma coreografia estática ou de um fotograma dinâmico se tratasse. Se alguém conseguisse vislumbrar a sua face, veria nela espelhada um sorriso denunciador. Anulit e o rio pareciam um só, plácidos e fluidos. Como narrador omnisciente, posso vasculhar as memórias recentes de Anulit. Vejo a descoberta do amor, o êxtase da união, o fruição de um cosmos reduzido e reservado, o ímpeto da entrega, o culminar físico de um arrebatamento espiritual. Se pudesse e quisesse analisar, diria que esta perfeição resulta da soma das imperfeições. O seu coração vai palpitando mais depressa, acompanhando a velocidade do leito. “Não distingo a paixão da apreensão”, pensou. A aceleração toma conta da embarcação, antevendo uma inevitabilidade. Subitamente, o bote abranda e pára. Anulit volta a si, ergue o tronco e entrevê uma figura envolta na contraluz.
- És tu, meu amor?
- Sim - responde a voz masculina. - Como vieste aqui parar? Não sabes que este caudal é perigoso? Aflige-me ver-te em apuros.
- Como poderia estar em apuros? Esta felicidade é tudo o que poderia desejar. Não mais me sentirei assim na vida. São momentos únicos.
Antes que algo possa ser feito, Anulit levanta-se, o corpo lânguido cai à água e é abraçado pela torrente violenta da cascata.
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