XXI



No ambiente fumarento do cabaret, nada era diferente dos dias anteriores. Todos esperavam a actuação de Rèlinne. A música da banda entretinha os ouvidos e preenchia o espaço entre as conversas regadas a whisky e cocktails. Uma lascívia ébria germinava das tentativas de sedução. A elegância andava de mãos dadas com a decadência.
- Damas e cavalheiros, Rèlinne!...
Em simultâneo, todas as atenções afunilam para o pequeno palco. Mesmo um mero observador exterior a este tipo de ambientes desviaria a atenção dos seus juízos para os seus sentidos. A chanteuse possuía uma presença magnética, evidenciando uma beleza fora do vulgar e um charme exalante que dominava as sensações. O piano e o contrabaixo quebram o silêncio. Então a voz de Rèlinne é suavemente solta, envolvendo os presentes com o seu timbre firme e aveludado. A emoção impressa e a sensualidade sugerida compõem um filigrana que arrebata corpo e alma. As figuras estão tão inebriadas e absorvidas que se esquecem de tudo à sua volta. A sua voluptuosidade quebrou todas as continuidades do salão e, naqueles momentos, todos lhe pertenciam. Ao fim do primeiro tema, a conquistada audiência desfaz-se em aplausos e elogios. Neste breve momento, Rèlinne avista um rosto familiar na audiência. Um homem de aparência consumida e penosa. Enquanto retomava o repertório e concentrava as atenções, veio-lhe à memória a identidade da figura reconhecida. “É ele! Oh, meu Deus! Que faz ele aqui?”, pensou. Após o espectáculo, retirou-se para o seu camarim. Bateram à porta, e o aderecista avisou que havia alguém que lhe queria falar, ao que pediu para o deixar entrar.
- Senta-te, Luq! - proferiu sem se voltar.
- Olá, Rèlinne! Como estás, depois destes anos todos?
- Bem. Não passei os últimos 20 anos encarcerada, ao contrário de ti.
- Paguei pelos meus pecados. Tu sabes bem disso.
- Qualquer castigo nunca será suficiente. Há crimes que não se compensam. Não te sentes arrependido?
- Sim. No momento seguinte à consumação já me lamentava. Sabia que te iria perder para sempre.
- Privaste-me do homem que iluminava a minha vida, que me fazia sentir viva. Para isso não há perdão. Se bem que, caso isso não tivesse acontecido, nunca me teria refugiado na música e não estaria tão realizada como estou hoje.
- Nem tudo foi mau, então.
- Não te compete avaliar isso.
- Rèlinne, o tempo não te dissipou o rancor?
- Claro que não. O desejo de vingança estava apenas adormecido.
Rèlinne vira-se e pôde-se ver a ira estampada na sua face rubra.
- Ao ver a tua face, o gigante acordou. E agora vai destruir-te.
Num ápice levanta-se e lança-se a Luq de punhal na mão. Ele detém-na e afasta a arma. Ao voltar para o seu lugar, olha-o através do espelho.
- Agi por impulso. O ódio é como o amor. Leva-nos a fazer coisas extremas.
- São emoções viscerais, pois anulam a razão e a auto-estima. Mais cedo ou mais tarde alguém sai magoado. Ambos induziram-me a fazer algo hediondo há 20 anos atrás. Não cometas o mesmo erro.
- Não voltarei a ser a mesma depois de hoje. Maldito sejas!
- Vou-te deixar em paz. Não pretendia acordar os fantasmas.
Luq sai porta fora e Rèlinne desata num pranto irreprimível. Sentia que a consternação contaminaria a sua vida futura, tornando vivas as memórias angustiantes da perda e da falta de concretização. Nenhuma bondade conseguiria indemnizar esse intuito desperdiçado.
- Maldito sejas! Mataste-me duas vezes. E tu continuas vivo.

3 Comments:

Blogger Ricardo Cardoso said...

É a consonância magnética que nos faz estoirar de tanta emoção, são os jogos encantadores das palavras que reúnem os mais tristes fins. Que me perturba, e que me faz pensar: és mesmo muito bom!

Parabéns, continua!

17/4/07 20:44  
Blogger Ricardo Cardoso said...

This comment has been removed by the author.

17/4/07 20:44  
Blogger Contabilista Emocional said...

Obrigado pelo elogio. Vou tentar manter o ritmo.
Abraço!

18/4/07 00:22  

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