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A originalidade verbal tinha sido apagada dos hábitos de Barquil. A morte prematura do seu pai, sua referência literária durante os anos de infância e adolescência, fê-lo questionar toda a sua actuação e forma como lidava com as palavras. Todas as expressões já tinham sido criadas, e ele não se sentia suficientemente inteligente para ser autor de uma qualquer frase inédita. “Para quê, se tudo o que é importante já foi ou será inventado por outrém? Não serei eu que farei a diferença nem mudarei a vida de ninguém por algo que profira.”. Esta espécie de anti-niilismo começou a reger a sua vida. De início, o esforço intelectual e de memória era esgotante, uma vez que tinha que adequar uma citação de algum vulto artístico ou político para se poder exprimir. Após algum tempo já tinha agilidade mental suficiente para que, com pequeno esforço, pronunciar material alheio, da mesma forma que o comum mortal refere chavões e estereótipos, mas noutro plano. Porém, este tipo de atitude não foi sendo bem aceite pelos demais, evoluindo para uma incompreensão geral dos concidadãos e um especial repúdio por parte dos intelectuais da terra. Barquil tornou-se uma espécie de pária, sendo apenas abordado como objecto de zombaria. Ainda assim, via estas últimas atitudes como preciosas oportunidades de comunicação. Certo dia, enquanto estava absorvido nos seus pensamentos próprios sentado num banco de jardim, foi abordado por uma rapariga com uma expressão que lhe causou algum impacto. “A natureza concedeu aos grandes homens a faculdade de fazer e aos outros a de julgar” (1). Disse isto e desatou a correr. No dia seguinte surpreendeu-o com “É melhor que fale por nós a nossa vida, que as nossas palavras” (2). Seguiu-se “Se soubéssemos quantas e quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas, haveria muito mais silêncio neste mundo” (3). E todos os dias repetia-se o ritual, só que a horas diferentes, apanhando Barquil desprevenido. “Aquele que nada espera da vida, goza como uma surpresa o que ela lhe pode dar” (4), disse ela, gozando quando o apanhava de sobressalto. O conhecimento mútuo de tais palavras fez fermentar uma paixão pela rapariga. Começou a retribuir-lhe com ditos e máximas. A “O passado e o futuro parecem-nos sempre melhores; o presente, sempre pior.” (5) respondia com “O amor é a única paixão que não admite nem passado nem futuro”(6), e a “A vida é um sonho, mas sonhar não é viver” (7) contrapunha com “O amor é um sonho que chega para o pouco ser que se é” (8). Esta espécie de contestação começou a surtir algum efeito, uma vez que a espera pela correspondência era mais demorada e a brusquidão ia-se extinguindo nas suas aparições. Ao fim de vários dias, semanas ou meses (aqui o fio temporal deixou de ser mensurável), ela entrou no seu cenário em silêncio e sentou-se ao seu lado. “Amar é também agir” (9), lembrou Barquil. Levantou a cabeça e olharam olhos nos olhos. Beijaram-se. Culminou num “Amo-te”. Esta expressão de autor desconhecido nunca lhe pareceu tão original. A partir desse dia a sua vida passou a ser um inédito.

Autores citados:
(1) Luc de Clapiers Vauvenargues;
(2) Mohandas Gandhi;
(3) Oscar Wilde;
(4) Condessa Diane;
(5) William Shakespeare;
(6) Honoré de Balzac;
(7) Christiaan Huygens;
(8) Fernando Pessoa;
(9) Saint-John Perse.

Este post teve a preciosa ajuda do Citador e do Pensador.

2 Comments:

Blogger Will said...

Gostei. Gostei muito mesmo. E hei-de voltar.

18/9/07 10:39  
Blogger ti...* said...

BRAND NEW!!!!

devido a alguns problemas "Bloguicos" o blog "The World in my spoon" foi eliminado!
Eu sei que é um dia triste para a humanidade!

mas não desesperem a nova versão acabou de sair:

"STORY TAILERS"

http://talesoftheforgottenmelodies.blogspot.com/

Aguardo os Comments...

Beijos e abraços.

Ti...*

19/10/07 18:19  

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