XXXV



Criba era cega de nascença. Tal como acontece com grande parte daqueles que se vêem privados de um ou mais sentidos, houve um apuramento dos restantes. Não via a intensidade cromática de uma flor a desabrochar, mas o primor do seu perfume preenchia esse vazio nunca sentido. Não via o mar, mas o som das suas ondas a espancar a areia para depois a acariciar com o bálsamo da sua espuma era algo que os seus ouvidos não conseguiam descrever. Não via a chuva, mas a sua língua testemunhava o paladar do ciclo da água. Não via o seu gato, mas o simples roçar do seu pêlo fazia-a adivinhar as suas intenções, emoções e acções.
Criba sabia que era portadora de formas e feições perfeitas, exibindo uma beleza, no mínimo, consensual. Ela própria se achava formosa e muita gente lhe confirmava isso. Por isso era tão cobiçada pelos homens e pelas mulheres. Por vezes deixava-se seduzir, se bem que o papel de sedutor e seduzido se confundem a partir da primeira cedência. Quando se entregava fisicamente a alguém, gozava de sensações que a outra parte nem imaginava. A sua percepção era tão intensa que a excitação resultava amplificada. O sabor de um beijo era mil vezes mais prazenteiro que o mais suculento dos doces. Na ofegância da volúpia residiam as mais estimulantes palavras. Os cheiros e os fluidos quentes entrelaçavam animalidade com paixão. O toque na pele alheia transformava todo o corpo num latejante órgão sexual. Esta enorme assimetria tornava qualquer envolvimento sempre injusto para a outra parte. Apesar dos parceiros se iludirem, pensando ser os responsáveis por tais êxtases, cada acto não passava de masturbação assistida. Isto inevitavelmente levou a uma vida de promiscuidade, mas essa conduta começou a ser mal vista pela comunidade, que acabou por condená-la a uma vida marginal, de clausura social. Começou a ter cada vez menos contactos, até porque muitas vezes resultavam no insulto fácil e na humilhação, e acabou por se isolar dos restantes.
Após vários anos de vivência como pária, apareceu junto a sua casa, situada nas proximidades do mar, seu único confessor, um rapaz que não reconheceu. Aproveitou o facto de ele não a ver para apreciar o vigor dos seus passos e distinguir o seu cheiro, deveras aprazível e diferente de todos os que tinha experimentado. Todos os dias, sempre que o detectava, ia dissimuladamente espiá-lo. Começava a traçar pormenores, a deixar-se consumir lentamente pela curiosidade e pelo desejo de ouvir a sua voz e sentir a sua mão. Para tal, escolheu um dia ameno para se sentar no alpendre. Após alguma espera, sentiu o rapaz a aproximar-se e, como o impulso sonoro do radar em crescendo de frequência, o seu coração acelerava. Quando estava junto da escada da entrada, dirigiu-lhe a palavra:
- Desculpe, por acaso não tem chá?
Fez tábua rasa ao julgamento dos seus pares e respondeu:
- Tenho, sim. Aliás, ia agora mesmo fazer um. Aceita um marroquino?
- Muito obrigado, é muito gentil.
- O meu nome é Criba – disse, estendendo-lhe a mão.
- Siltu. É o meu nome. Era o nome do meu avô também. Que coisa mais antiquada, não acha?
- Nem por isso. A minha avó também se chamava Criba – acrescentou, mentindo.
Foi para dentro, trouxe o chá para o alpendre e falaram durante horas. Como Criba conhecia e movia-se tão à vontade no seu pequeno universo e evitava dirigir o olhar para onde a voz de Siltu provinha, este não se apercebia da sua incapacidade. A partir dessa altura encontravam-se todos os dias, passeavam enquanto exploravam afinidades, riam enquanto a percepção mútua se aprofundava, sentiam o mar, cada um à sua maneira, enquanto se encantavam. O amor brotou naturalmente.
Siltu era reservado em relação à sua intimidade, e este retraimento era respeitado. No entanto, era inevitável a consumação física do forte sentimento que nutriam. Na primeira noite que dormiram juntos, Criba não mais experimentou aquela luxúria exacerbada que lhe invadia o cerne. Agora o fluxo não era de fora para dentro, mas no sentido inverso. Sentia necessidade de dar mais do que recebia. O equilíbrio de que nunca careceu fazia agora mais sentido que nunca. Aliviava-se da culpa pelos seus comportamentos passados, como se essa censura alguma vez fosse legítima. Siltu era a sua fonte de bem-estar, harmonia, vigor.
Certo dia, depois de horas passadas no leito, propôs Criba:
- Quero apresentar-te aquele que partilha o meu amor contigo.
- Quem? – perguntou, intrigado, tentando afastar a ideia que uma terceira pessoa poderia repartir aquela felicidade.
- Vem comigo.
Levantaram-se da cama e dirigiram-se, nus, para a porta de casa. Criba conduziu-o até ao mar e incitou-o para um banho.
- Não quero. Não insistas. Olha que o mar está turbulento.
- Confio nele plenamente.
- Deixa lá isso. Já mo apresentaste. Agora voltemos para dentro.
- Vem conhecê-lo mais de perto.
Confiante que Siltu a seguiria, não se apercebeu que ele ficou para trás, pois o ruído do oceano engolia os outros sons. Mergulhou nele enquanto Siltu esbracejava ao longe, avisando-a do perigo. Uma série de vagas colheu Criba, atirando cruelmente o seu corpo contra as rochas. Siltu permaneceu estarrecido, em parte devido à perda que despedaçou o seu peito, em parte devido ao remorso por nunca ter aprendido a nadar.

2 Comments:

Blogger Unknown said...

Que final tão trágico para uma estória tão bela! Mas a vida é assim: hoje Siltu chora por quem ontem ria.

Acho que deverias publicar esses contos no Negra Tinta.

Hugzz!

9/1/08 23:58  
Blogger EguR said...

WoW, quase sentia a brisa do mar ao ler esta "curta metragem". Adorei! Continua a dar-nos momentos destes. Abraço :)

10/1/08 00:12  

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